O caçador de pipas

Caçador de Pipas – Em busca de si mesmo

Qual é a imagem que você tem do Afeganistão? Se você tiver nascido nas décadas de 1960 e 1970 (como eu), provavelmente guarda apenas as lembranças de um país destruído pelas sucessivas guerras que abalaram o país depois da invasão russa no final dos anos 1970. Para você, como para mim, o Afeganistão nada mais é que apenas mais um país árabe conturbado pelo fanatismo religioso e por todas as suas repercussões e conseqüências. E porque pensamos dessa forma?

Evidentemente por sermos ocidentais, nascidos num outro continente, em um país de características culturais completamente diferentes daquelas vigentes no Oriente e, mais especificamente ainda, completamente díspares das estruturas vigentes no mundo islâmico. É muito complicado para qualquer um de nós entender, mesmo que minimamente, as diferenças entre Sunitas e Xiitas, a posição da mulher no contexto árabe, o fervor religioso que mobiliza o surgimento de homens-bomba, as rixas e diferenças entre Israel e os países que professam sua fé em mesquitas ou mesmo o cotidiano e suas diferentes cores, roupas, alimentos, cheiros…

Mesmo quando nos debruçamos nos livros e investimos tempo e esforço no estudo da história, hábitos, dia a dia, trabalho, religião e qualquer outro aspecto marcante da cultura árabe corremos o risco de inferir, interpretar ou simplesmente pensar naqueles povos e regiões colocando como base de análise os nossos próprios contextos e realidades.

Quando éramos crianças, Hassan e eu trepávamos nos choupos da entrada da casa de meu pai e ficávamos chateando os vizinhos, usando um caco de espelho para mandar reflexos de sol para as suas casas. Sentávamos um defronte do outro, nos galhos mais altos, com os pés descalços pendurados no ar e os bolsos das calças cheios de amoras e nozes secas. Ficávamos nos alternando com o espelho enquanto comíamos amoras, jogando frutos um no outro, entre risinhos e gargalhadas. (Cap. Dois)

Ao fazermos isso estaremos imediatamente comparando e, a partir desses paralelos traçados entre o mundo ocidental e oriental, é praticamente irremediável que consideremos nossa realidade superior a dos povos árabes. Não concordo com isso, pelo contrário, tento pensar de forma isenta, percebendo as diferenças e buscando traçar roteiros históricos que me permitam compreender a origem dos hábitos que caracterizam diferentes sociedades. Minha formação original em história me leva a pensar e agir dessa forma, no entanto, por mais que queira, algumas vezes me vejo depreciando o que vem de outras culturas e enaltecendo o que nos é próprio e particular.

O ideal é que possamos vivenciar experiências nos próprios países que estudamos para que, a partir desse encontro com a realidade, do vagar pelas ruas, da conversa com as pessoas daquele povo, da percepção da arquitetura e da arte, da possibilidade de saborear os pratos típicos ou da visualização das tradições e do cotidiano, possamos ter uma visão menos preconceituosa de outros mundos.

Há evidentes e reais dificuldades em qualquer tentativa de configurar visitas a todos os países do mundo. Não são apenas limites financeiros que travam qualquer tentativa nesse sentido, mas também familiares, de trabalho, tempo ou mesmo culturais. Por isso mesmo, quando podemos viajar para outros contextos a partir da leitura estamos criando pontes que podem, e devem, contribuir para que superemos as barreiras que se criam entre as nossas e as outras culturas e realidades.

Todo ano, no primeiro dia em que começa a nevar, faço a mesma coisa: saio de casa bem cedo, pela manhã, ainda de pijama, apertando os braços contra o peito para enfrentar o frio. Vejo a entrada, o corro de meu pai, o muro, as árvores, os telhados e as colinas cobertos por mais de um palmo de neve. Sorrio. O céu está limpo e azul, e tudo é tão branco que os meus olhos chegam a arder. Enfio um punhado de neve na boca, fico ouvindo aquele silêncio abafado que só é rompido pelos grasnidos dos corvos. Desço os degraus, descalço, e chamo Hassan para vir também. (Cap. Seis)

O caçador de pipas, de Khaled Hosseini, foi um autêntico divisor de águas na minha compreensão particular do Afeganistão (e acredito que também tenha sido para os milhares de leitores que transformaram o livro num best-seller no Brasil). E o mais interessante de tudo isso é que não estamos falando, é claro, de um livro de História, pelo contrário, trata-se de um romance.

E por se tratar de um romance é que ganha maior impacto e repercussão. Hosseini nos coloca em contato não apenas com a imagem e a realidade de um país que desconhecemos, ele abre as cortinas e nos permite ver aquilo que está presente na cabeça e até mesmo no coração daquele povo através de seus personagens.

Não parecemos distantes daquilo que é descrito e apresentado, vamos aos poucos sendo introduzidos num universo que nos é próximo justamente por estarmos sendo inseridos nele a partir daquilo que nos torna verdadeiramente humanos, os nossos sentimentos. E que sentimentos são esses?

Enquanto as palavras do Corão ressoavam pela sala, lembrei da velha história de baba enfrentando um urso negro lã no Baluquistão. Meu pai passou a vida inteira enfrentando ursos. Perdeu a jovem esposa. Teve de criar um filho sozinho. Precisou abandonar a sua querida terra natal, o seu watan. Conheceu a pobreza. A indignidade. Até que, afinal, apareceu um urso que ele não conseguiu derrotar.

São aqueles que unem pais e filhos, amigos próximos e também os que nos conectam aos nossos companheiros no amor. Portanto estamos nos referindo a aquilo que é mais universal entre os homens e que, como conseqüência disso, sensibiliza qualquer pessoa, independentemente de sua cor, credo, gênero, etnia, time de futebol…

A história de um romance se universaliza quando explora justamente as características que nos tornam mais próximos enquanto seres humanos. Romeu e Julieta, Hamlet, Othelo e as principais obras de William Shakespeare continuam sendo lidas por novas e novas gerações de habitantes desse planeta porque falam com profundidade sobre o amor e o ódio, a raiva e o perdão, a paz e a guerra, a traição e a fidelidade…

Shakespeare se tornou o autor mais conhecido e respeitado da literatura porque seus personagens não se distanciam daquilo que nós somos em nossas vidas. É também nessa vertente que Khaled Hosseini desenvolve sua obra O caçador de pipas. O próprio título nos mobiliza e aproxima da leitura por despertar reminiscências da infância, do alegre bailado das pipas nos céus em uma constante e sadia disputa por espaço e evidência.

Somos os caçadores de pipas não apenas na infância, e é nesse ponto que reside a história dos personagens Amir e Hassan, irmanados por uma história de vida comum nos primeiros anos de suas existências apesar das evidentes diferenças sociais relacionadas a origem familiar de ambos.

Amir é o “primo” rico, Hassan o pobre. O primeiro é o senhor da casa em que vive com o pai, sem a presença da mãe, falecida em seu parto. O segundo também é órfão da presença materna e vive com o pai, serviçal da mais completa confiança de seu patrão, o pai de Amir. As diferenças sociais existentes entre eles existem nas roupas, nas casas, nos brinquedos e, até mesmo, nos alimentos que consomem, mas inexistem na relação de proximidade e amizade.

A sociedade não vislumbra esse encontro e convivência tão especial, permeado pela amizade descompromissada e fiel pelo fato dos meninos serem de etnias diferentes dentro do sistema de castas existente no Afeganistão. No entanto, para os dois garotos, não há preconceito algum, eles vivem o mais singelo e verdadeiro sentimento que move os verdadeiros amigos.

Há, no entanto, segredos familiares que eles desconhecem. Existem também diferentes atitudes dos dois meninos no que se refere à lealdade que reservam um ao outro. São tão fortes essas relações/situações que os elos que os unem numa forte e aparentemente indestrutível relação se despedaçam quando eles têm perto de 10 anos de idade. Se não bastassem as circunstâncias da vida pessoal, a história do país passa por grandes reviravoltas e as lutas políticas internas do Afeganistão os afastam por um longo período de suas vidas. Será que é para sempre?

É nesse ponto que um elemento comum de suas vidas na infância cria pontos de reencontro entre Amir e Hassan. Só que os espinhos e as mazelas do passado se erguem entre eles e só podem ser superados a partir de um reencontro. Mas, como reunir pessoas depois de mais de 20 anos que vivem em realidades diferentes, em países distantes? Hassan amargou os duros anos das guerras de seu país enquanto Amir emigrou para os Estados Unidos…

Emocione-se a cada página, aprenda com cada capítulo uma nova lição, entre num diferente ritmo de leitura, mais reflexivo e passional, muito próprio de uma cultura fascinante que pouco conhecemos e descubra os encantos de O caçador de pipas. Imperdível!

João Luís Almeida Machado Doutorando pela PUC-SP no programa Educação: Currículo: Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP; Professor universitário e Pesquisador atuando no Centro Universitário Senac em Campos do Jordão; Editor do Portal Planeta Educação.

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