Dia 12: Um conto

Um conto que eu amo, acho lindo, perfeito. E mais ainda porque a autoria é do Bruno (sim, o Pê). Espero que ele não me esgane por eu postar aqui.

O GRANDE AMOR

Todos os dias, Elauro saía de sua casa para trabalhar às sete horas da manhã. Não que precisasse chegar tão cedo no serviço, ou que a sua casa fosse distante a ponto de se demorar quase uma hora para chegar. Fazia isso por que gostava de ser o primeiro na empresa. Uma vez, um representante de vendas, que foi transferido da cidade vizinha, por causa do ônibus, chegava às seis e meia. Nessa época, Elauro saía de casa às seis para poder chegar antes que o matutino vendedor. Possuía as chaves da firma, e se alguém chegasse antes do que ele, já era motivo de irritação para o dia todo.
Sua mulher, Lindalva, acordava mais temprano ainda. Antes de o sol nascer, já estava ela a preparar o café, deixar a manteiga para fora da geladeira, de modo a estar na consistência perfeita para quando ele acordar, cortar as fatias de pão todas do mesmo tamanho, pegar o jornal na garagem e, por fim, despertá-lo com palavras de carinho.

Lindalva era isso, uma mulher perfeita e atenciosa com o seu marido. Elauro não tinha do que se zangar, no entanto, nada dizia que pudesse demonstrar sua alegria. A mulher, serena, aceitava aquela indiferença com carinho, não pedindo nada além da sua companhia.

Elauro saía para trabalhar feliz, contente por a rua estar tão vazia, o silêncio ser tão envolvente, “Deus ajuda quem cedo madruga!”. E guiava o seu Fiat pela avenida, cantando as músicas da rádio e beijando com as mãos as marchas que delicadamente mudava. Quem o visse passando tão alegre imaginaria que o dito cujo não tinha problemas. E não tinha mesmo. Sua vida era como ele sempre quis: calma, singela e insuportavelmente monótona. Mas era assim mesmo que ele gostava.

No trabalho, podia se dizer que era mais sossegado ainda: vinte e quatro anos de serviço e o troféu de melhor empresa do ramo, de doze anos atrás, reluzia ainda em sua mesa graças às infinitas lustradas que duravam expedientes. Quem quisesse falar com ele, deveria revestir-se primeiro de muita paciência. O famigerado era tão calmo para falar como para viver. E a vida seguia assim, nas monocromáticas imagens das suas pacatas semanas e meses, e anos, e décadas…

Mas um dia entrou uma mulher em sua sala. Linda. Veio tratar de alguns negócios do seu marido. Tão perfumada, tão doce era o seu cheiro. Partiu logo, deixando apenas o aroma de seu perfume no ar. Elauro encantou-se com aquela suave fragrância, fazia-o lembrar de um grande amor que teve há muito tempo. O Grande Amor. Mas não era aquela moça. Como era mesmo o nome? Não lembrava. Precisava recordar o nome, pelo menos o nome. E o perfume? Ajudaria saber a marca, comprar um frasco e sentir todos os dias aquele delicioso odor que o fazia escapulir de seu quadrilátero universo para cair enfim nas claras almofadas das quimeras?

Chamou o estagiário. “Conhece esse perfume?” “Não, senhor.” Droga! Precisava se recordar de alguma forma. Só se… Claro! Chamou a secretária e pediu que ligasse para aquela mulher. Enquanto aguardava a ligação, pensava numa forma de fazer tão indiscreta pergunta. Mas estava convicto a fazê-la. O telefone tocou. Ele fraquejou em atender. Levantou-se, queria ir até a recepção pedir que a secretária cancelasse o pedido. Tocou de novo. Sentou-se de modo a acomodar-se bem, pegou um papel e uma caneta e atendeu. Na hora, não pensou em modo algum de introduzir a tal pergunta, mas marcou para ela voltar à tarde, acertar o contrato. A mulher então marcou o novo horário com a secretária, que abismada, não acreditava na rapidez da decisão de Elauro. Normalmente esses contratos demoravam semanas para serem efetivados. Havia algo estranho nele, estranhíssimo.

Chegou a hora marcada. A mulher entrou já querendo tratar dos negócios, como que a aproveitar a repentina aceleração das de-cisões do sossegado empresário. Devia correr, pois poderia ser coisa passageira. Sua fama era notória em dar chá de cadeira e outras i-guarias mais exóticas, como telefones e agendas.

Com ela, entrou de novo o perfume, dessa vez com uma car-ga mais forte. Devia ter reforçado no almoço. Talvez o frasco esti-vesse ali, dentro da bolsa. Talvez no carro. O fato é que Elauro con-cordava hipnotizado com todas as cláusulas, nem sequer pensava nelas. Seus sentidos todos estavam focados no olfato, que respondia positivamente por todos os outros.

Tratados os primeiros itens do contrato, a mulher mostrou-se cansada, esboçando um bocejo. Era a hora! “Não pude deixar de notar que a senhora usa um perfume que muito me agrada, mas não me recordo o nome…” “É Paco Rabane… é do meu marido, adoro usá-lo.” Sim, era esse o perfume. Essa pequena informação rendeu a firmação mais rápida de um contrato da vida de Elauro. A mulher saiu contente e elogiada, pensando “Ele não é tão mal-humorado como todos dizem, nem tão minucioso, aceitou sem rezingar todas as cláusulas!”.

Elauro não se cabia na pequena sala. “Vou sair”, disse à se-cretária. Passou a mão nas chaves do carro e seguiu para o centro. O sinal amarelo viu pela primeira vez a carroçaria do Fiat passar por debaixo de si, à toda velocidade. Chegou à perfumaria, pediu um Paco Rabane. “É presente?”, perguntou a vendedora. “Sim”, res-pondeu sorridente como há muito tempo não costumava falar, tanto que se sentiu um bocado acanhado.

Chegou mais cedo em casa, a mulher nem tinha preparado o café da tarde, o qual era servido religiosamente às seis horas, sempre na mesma temperatura, na mesma xícara, no mesmo “mesmo” de sempre. “Vamos jantar fora”, disse a ela que, espantada, sorriu. “O que aconteceu? A empresa ganhou outro troféu?”.

Foram a um restaurante maravilhoso. Simples, mas com uma deliciosa comida. Pediram uma cerveja. Tomaram juntos, brindando a beleza da vida que levavam. “Semana que vem vou vender o Fiat”, disse com o mesmo sorriso que o acompanhava desde à tarde.

O espanto da mulher só não foi maior do que a sua felicida-de. As simples cores do mesmo mundo de sempre se restauravam magicamente, e a lua brilhava mais doce.

A noite pedia para não acabar nunca jamais. Deram-se os braços e desceram para a praça, ouvindo a bela sinfonia da cidade. Os motores dos carros na avenida, o tilintar das gargantas à distância, as folhas arrastadas pelo vento, tudo era música. “Tenho um presente para você”, disse o homem. “O que é?”.

Elauro entregou o pequeno embrulho à mulher. Ela abriu desconfiada. “Um perfume… você nunca me deu um perfume”. O marido abraçou-a, beijou-a com uma fome de carícias de vinte e poucos anos, e disse docemente. “É que só hoje eu descobri o perfume que você gosta”. “Sim”, disse emocionada, “Eu usava quando era mais nova, faz tanto tempo… muito obrigada”. Então outro abra-ço mais caloroso aconteceu, e o universo parou naquele instante. Os carros já não corriam, o vento já não varria mais as folhas. Todos pararam para vislumbrar O Grande Amor.

Imagem We ♥ It.

6 comentários em “Dia 12: Um conto

  1. Hey, não acredito que me emocionei!!! Bruno, parabéns, saiba que fiquei realmente com lágrimas nos olhos e cada palavra sua me fez imaginar até os mais detalhistas traços das cenas que vc descreveu!! Nanda, tá bem, hein garota??!!! Beijos!!!

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